O Hamlet negro de Rodrigo França
Estive em São Paulo agora no início de 2025 e encontrei o Hamlet de Shakespeare em vários locais da cidade.
O príncipe dinamarquês estava citado na exposição do Itaú Cultural sobre Oswald de Andrade em sua famosa frase do Manifesto Antropófago (1928), “Tupy, or not tupy that is the question”.
Ele é mencionado também na Pinacoteca, no quadro “Visão de Hamleto”, do pintor brasileiro Humberto Espíndola.
Hamlet também foi indiretamente citado na peça de comédia “A falecida senhora sua mãe” (1908), do dramaturgo francês Georges Feydeau, produzida pelo grupo TAPA e exibida no Teatro Itália. Uma das personagens, o esposo, ao tentar dormir sem sucesso, solta um “dormir, talvez sonhar”, aludindo comicamente, numa cena doméstica banal, a um trecho (“to sleep, perchance to dream”) do famoso solilóquio existencial do dinamarquês.
A apropriação mais interessante de Shakespeare, contudo, foi a adaptação “Eu sou um Hamlet”. A peça foi exibida no SESC Pinheiros e interpretada pelo ator e escritor carioca Rodrigo França, com direção de Fernando Philbert.

A peça tem início com um áudio de reportagens reais brasileiras sobre denúncias de racismo e abusos policiais. O texto da obra inglesa é intercalado com um texto original brasileiro que discute a violência sofrida pelas pessoas negras. Nessa combinação, são integrados outros materiais, como músicas brasileiras, de Elza Soares, por exemplo, e referências à cultura iorubá.
A peça de Shakespeare, criada provavelmente entre 1599 e 1601, aborda, entre outras coisas, a transição de poder monárquico. O rei, pai de Hamlet, morre e é sucedido por seu irmão usurpador Claudius, que se casa com sua agora ex-cunhada Gertrude, mãe de Hamlet. Contudo, a Dinamarca de Shakespeare significa, na verdade, a Inglaterra — naquele momento em transição entre a dinastia Tudor e a Stuart. O imbróglio entre o pai e o tio de Hamlet aponta veladamente para essa transição histórica.
O intuito do dramaturgo inglês, com esse disfarce geográfico, foi possivelmente criar um efeito de antiguidade, extravagância e ambientação arcaica, como afirma Philippa Berry aqui. Outra possibilidade é que Shakespeare queria atender aos interesses do Rei James I e da Rainha Anne, dinamarquesa, que ascenderiam ao trono em breve, como afirma Moriah Theriault aqui. A geografia de Shakespeare, como se vê, é tanto histórica quanto metafórica. A existência de algo “podre no reino na Dinamarca” (“Something is rotten in the state of Denmark”) veio a simbolizar a vulnerabilidade de qualquer governo.
A peça interpretada por França também é ambientada no mesmo país nórdico, mas disfarça menos o contexto real. Aqui aparecem mais abertamente as raízes fundantes - brasileiras - da tragédia. E o tema político é inserido no presente, até porque a peça retoma a fala recente de um ex-presidente de que um homem negro pesa mais de sete arrobas.

De tudo, o que achei mais interessante nas peças foi como exploram a questão existencial sobre o que os Hamlets fazem do que fizeram deles. O do Shakespeare hesita em agir, longamente ocupado em tentar entender seu papel no duplo dilema familiar e monárquico. Quando tenta se vingar, Hamlet o faz inabilmente e acaba assassinando outra pessoa. O Hamlet de Philbert, se entendi bem, resvala na ambiguidade. Ora parece que ele cometeu um crime e está encarcerado, ora parece que foi somente uma divagação, alinhando-se com o caráter introspectivo do protagonista shakespeariano.
A meu ver, a grande questão do Hamlet negro é: como responder à violência racial? A ambiguidade não permite definir, e achei que essa divagação inconclusa é o coração da peça. Essa falta de um direcionamento preciso, o repouso nessa lacuna, parece ser a chave para a questão. “Eu sou um Hamlet” não adota uma postura retaliadora explícita, nem uma pacificação flagrantemente ingênua. A ambiguidade, a divagação, a lacuna parecem sinalizar um reconhecimento dos impasses intrínsecos a ambas as atitudes.
Retomo o quadro de Humberto Espíndola: há no centro a figura de um touro preto e sobre ele está escrito virtvte (“virtude”). Ao redor, há duas figuras semelhantes na cor branca. Relacionando o quadro à peça de Shakespeare, as imagens brancas podem representar forças opostas — como a dualidade entre o dever e a moralidade — que transtornam o protagonista. Relacionando-o ao Hamlet de França, podemos pensar que o homem negro está assombrado pelos brancos. Fico a me questionar qual é a virtude possível para o Hamlet brasileiro, situado entre suas polaridades existenciais específicas e vivendo em um país de “tragédia colonial” que produz “uma espécie de homem negro esvaziado de si mesmo”, como diz o texto de apresentação da peça.

Por fim, a deglutição crítica de vanguardas europeias foi uma das reflexões centrais de Oswald, e acredito que a peça dirigida por Philbert é uma preciosidade nesse quesito. A alegria é a prova dos nove, como diz Oswald, e foi com esse sentimento que saí da peça, querendo assistir de novo a essa crítica sensível ao colonialismo racial e cultural.
Que texto MARAVILHOSO!!!! QUERO ASSISTIR ESSA PEÇA!!!!
👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼👏🏼